29 de abril de 2010

A tênue linha entre realidade e ficção

Por João Eurico Heyden e Marcelo Alves

De modo geral, a complexidade do mundo, somada à separação temporal e espacial entre as instâncias de produção e consumo da mensagem, torna fácil a criação de grandes mentiras nos meios de comunicação de massa. A mídia possui grande poder na manipulação de fatos, e, consequentemente, ainda hoje existem teorias conspiratórias sobre a veracidade de acontecimentos como a chegada do homem à Lua ou a Guerra do Golfo. A manipulação de ideias a partir de veículos midiáticos é antiga, mas mesmo um tema tão gasto como este pode nos trazer dúvidas e/ou risadas, como é o caso do filme Mera Coincidência (Wag the Dog).

O diretor Barry Levinson brinca com o espectador, utilizando de um roteiro que, de cena a cena, nos faz duvidar de nossa própria compreensão de verdade. A história é a seguinte: o atual presidente dos EUA está tentando se reeleger. Faltando poucos dias para a eleição, ele vira protagonista de um escândalo sexual, envolvendo uma menina que visitava a casa branca.


Para abafar o caso, o candidato chama para consertar seu erro um homem de confiança: Conrad “Connie” Bean - muito bem interpretado por Robert de Niro, que, como grande conhecedor do sistema, resolve criar um fato ainda maior para ocupar a mídia e a opinião pública. O resultado é uma guerra literalmente inventada: um espetáculo visual, produto de uma reunião das idéias de Conrad com a genialidade do produtor de cinema Stanley Motss (Dustin Hoffman). Entre os dois, e um pouco perdida com tal situação, encontra-se a assessora do presidente, Winfred Ames, interpretada por Anne Heche. De certa forma, ela representa o próprio espectador do filme, ao não acreditar que tamanha mentira enganaria tão facilmente ao público e à mídia.

Na guerra arquitetada, foi escolhido como inimigo dos EUA a totalmente figurante Albânia. Mais de uma vez Winfred questiona se as pessoas iriam engolir a mentira. Conrad sempre responde da mesma maneira irônica: “está na TV, não está?”. Crítica sutil e inteligente do diretor ao batido pensamento de que a realidade reproduzida na TV condiz com a cotidiana. O que se mostra totalmente infundado em função das inúmeras manipulações que o vídeo pode sofrer. Exemplo claro foi a cobertura que a Rede Globo fez do Movimento Caras Pintadas, reinterpretando-o como se fosse uma festa pelo aniversário da cidade.


Mera Coincidência reproduz como a assessoria de um candidato à presidência pode deixar vazar informações ou plantar falsas notícias nas mídias para conduzir a atenção do público. E como mundo se mobiliza a partir de informação. A palavra, virtual, gera efeitos no mundo real. As mídias publicam os fatos sem apurar, em busca do furo, do marketing, da fama efêmera. A concorrência entre elas em nada contribui para a diversidade de posições ideológicas. Pelo contrário, estimula a cópia recíproca e a pressa na apuração, a prisão ao instantaneísmo. Walter Benjamin já dizia que, na mídia, a informação só tem interesse quando novidade.

O filme também pode ser visto como um alerta, um estímulo a uma leitura mais crítica e consciente dos fatos noticiados, tanto por agências do governo quanto pela mídia em geral. Afinal, tanto um quanto o outro pode criar suas realidades, mas ainda é o povo/espectador quem decide se acredita ou não. Há, na verdade, uma luta pela opinião pública, que pode ser revertida em votos e índices de aprovação.

Vale também destacar duas atuações memoráveis. Primeiro a de Dustin Hoffman, em mais um papel genialmente inteligente, que por si só já valeria ver o filme. E a segunda é a de Woody Harrelson, interpretando o soldado criado pela produção da guerra, para ser o herói símbolo desta cruzada realizada pelo presidente americano contra as “forças terroristas albanesas”. Mais uma vez, Harrelson toma às vezes de um personagem que beira à insanidade, tal qual já fez em Assassinos por Natureza e, mais recentemente, na comédia Zombieland.

É claro que o filme é falho em alguns aspectos. Por exemplo, ao considerar que as pessoas assistiriam à cobertura desta “guerra” de maneira totalmente acrítica, e que os jornalistas colocariam todas as suas fichas em rumores, sem ao menos confirmarem por eles mesmos a história. Aspecto que pode ser um exagero estilístico. O filme caricaturiza o jornalista como uma massa, um profissional que apenas copia em sua busca frenética pelo furo, e sem focos de resistência, já que ninguém sequer suspeitou da farsa, principalmente o povo que sequer teve uma cena sua.


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